Subamos com o Senhor àquele lugar desde onde ele pronunciou o assim chamado “sermão da montanha” (Mt 5-7). Jesus dirige-se às multidões. Escutemos o Senhor, ele nos fala das bem-aventuranças (5,1-12), de que precisamos ser sal da terra e luz do mundo (5,13-16), faz umas comparações entre a antiga Lei e a Nova (5,17-48), fala-nos da importância de fazer as boas obras em segredo (6,1-18), que devemos ajuntar o nosso tesouro no céu e da necessidade de ter um olho são (6,19-23), das preocupações exageradas (6,24-34), dá-nos os mais diversos conselhos (7,1-23) e, ao concluir o discurso (7,24-29), o evangelista nos diz que “a multidão ficou impressionada com a sua doutrina” (7,28).
No meio deste discurso, há um versículo que chama a nossa atenção de uma maneira muito peculiar: “sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (5,48), é simplesmente assustadora. É preciso considerar – não podemos esquecer-nos jamais – que o Senhor se dirigia à multidão, aos seus discípulos, a todos (5,1; 7,28): Sede perfeitos… como o Pai! Digno de admiração! O programa proposto pelo Senhor é, desde o nosso ponto de vista, verdadeiramente ambicioso.
A santa ambição do cristão é ser santo, ser perfeito como é perfeito o Pai celeste. Para o cristão que conhece a Sagrada Escritura isso é claro: “é esta a vontade de Deus: a vossa santificação” (1 Tes 4,3).
São Josemaría Escrivá, o santo do ordinário – como bem o chamou João Paulo II – , descreve um pouco a história da chamada universal à santidade: “Como era evidente, para os que sabiam ler o Evangelho, essa chamada geral à santidade na vida cotidiana, na profissão, sem abandonar o próprio ambiente! No entanto, durante séculos, a maioria dos cristãos não a entendeu: não se pôde dar o fenômeno ascético de que muitos procurassem assim a santidade, sem sair do lugar, santificando a profissão e santificando-se na profissão. E muito em breve, à força de não a viver, a doutrina foi esquecida; e a reflexão teológica foi absorvida pelo estudo de outros fenômenos ascéticos que refletem outros aspectos do Evangelho”.
Houve um tempo em que se pensava que para ser santo era preciso ser ou sacerdote ou religioso, os leigos que se contentem em cumprir os dez mandamentos… e já estaria bom demais! Somos conscientes que todos estamos chamados à universal à santidade, todos: leigos, sacerdotes, religiosos, e até aqueles que não conhecem Cristo e sua Igreja. Muitos fatores influenciaram neste processo de retomada de consciência dessa verdade “tão antiga como o Evangelho e como o Evangelho, nova”: o desenvolvimento da eclesiologia, a evolução geral da cultura européia e a Ação Católica.
Entre os santos que se destacaram neste campo, citaremos três. São Francisco de Sales (1567-1622) apresenta um ideal de vida cristã profundo e simples, para ele a devoção se enquadra dentro do próprio estado de vida; seria uma falsa devoção, por exemplo, a de um pai de família que quisesse comportar-se como um monge ou a de um monge que quisesse ter as mesmas atividades de um pai de família. Santa Teresa do Menino Jesus (1873-1897) com o seu pequeno caminho de infância espiritual também marcou profundamente a espiritualidade na modernidade. Ela compreende que tudo em sua vida, inclusive as coisas mais insignificantes à primeira vista, deve glorificar o Senhor; entende que a história da sua vida é um canto à misericórdia do Senhor. São Josemaría Escrivá (1902-1975), fundador do Opus Dei, a partir do ano 1928, teria como tema constante de sua pregação que todos os cristãos podem e devem ser santos. Falava da chamada à santidade e ao apostolado no meio do mundo, nas circunstâncias e nas ocupações da vida ordinária (trabalho profissional, atividades culturais e sociais, matrimônio e vida de família etc.). Deste núcleo brota uma espiritualidade fundamentada no sentido da filiação divina, na identificação com Jesus Cristo – com uma atenção particular aos seus anos de trabalho em Nazaré – e na consciência da íntima conexão, por virtude da graça, entre o divino e o humano, entre a comunhão com Deus e o desempenho da própria tarefa e do próprio trabalho profissional no seio da sociedade civil.
No fundo da mensagem de Escrivá encontra-se uma decidida afirmação do caráter vocacional da existência cristã, uma aguda percepção da capacidade santificadora do Batismo e uma profunda compreensão da compenetração entre criação e redenção, que impulsiona a ser “comtemplativos no meio do mundo”, mais ainda, a “amar o mundo apaixonadamente”, enquanto realidade querida por Deus e incorporada, em virtude do decreto divino, à obra da redenção, que, incoado no tempo, desemboca na eternidade. A espiritualidade apresenta-se como perspectiva de luz que incita a pôr de manifesto a riqueza do conjunto da mensagem cristã. Dizia o São Josemaría: “Aí onde estão as nossas aspirações, o nosso trabalho, os nossos amores – aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. É no meio das coisas mais materiais da terra que nos devemos santificar, servindo a Deus e a todos os homens. Na linha do horizonte, meus filho, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não: onde de verdade se juntam é no coração, quando se vive santamente a vida diária…” (homilia Amar o mundo apaixonadamente, 8-X-1967).
Outro movimento que muito influenciou na espiritualidade moderna foi o assim chamado “movimento místico”. Inicia-se na Alemanha do século XIX e surge com o desejo de fundamentar a vida de piedade na liturgia e no dogma e no eco suscitado por alguns místicos contemporâneos.
Chegamos ao grande Concílio dos nossos dias, o Vaticano II, que representou uma verdadeira renovação no caminhar histórico da Igreja de Jesus Cristo. A Constituição Dogmática Lumen Gentium (LG) começa falando em seu cap.V que a Igreja é indefectivelmente Santa. Lembremo-nos que uma das notas da Igreja – Una, Santa, Católica e Apostólica – é exatamente esta: a santidade. Quando nós entramos na Igreja, através do santo Batismo, nós nos tornamos santos. Deus, o “único Santo” nos santifica pela ação do Espírito Santo em nós, mas nos santifica tornando-nos automaticamente membros de sua Igreja, nós somos santos na Igreja Santa. Todos na Igreja são chamados à santidade, essa idéia aparece muitas vezes no Concílio Vaticano II, na “Lumen Gentium”:
– “Todos os fiéis cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (LG,40). De qualquer estado: casado ou solteiro, sacerdote ou religioso, celibatários.
– “Todos os cristãos de qualquer condição ou estado são chamados pelo Senhor, cada um por seu caminho, à perfeição da santidade pela qual é perfeito o próprio Pai” (LG,11). De qualquer condição: ricos ou pobres, doentes ou sadios. “Cada um por seu caminho” quer dizer: cada um pelo caminho que o Senhor o conduzir. As últimas palavras lembram-nos Mt 5,48: “sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”.
– “Se pois na Igreja nem todos seguem o mesmo caminho, todos, no entanto, são chamados à santidade e receberam a mesma fé pela justiça de Deus (cf. 2 Ped 1,1)” (LG,32). Nem todos seguem o mesmo caminho na Igreja, já que alguns vão pelo caminho do matrimônio, outros, pelo do celibato, uns tem função de governo, outros, tem outras funções etc.; todos, no entanto, receberam a mesma fé através do Batismo, todos, enquanto cristãos, têm a mesma dignidade: a de filhos de Deus.
– “Portanto, todos os fiéis cristãos nas condições ofícios ou circunstâncias de sua vida, e através disto tudo, dia a dia mais se santificarão, se com fé aceitam tudo da mão do Pai celeste e cooperam com a vontade divina, manifestando a todos, no próprio serviço temporal, a caridade com que Deus amou o mundo” (LG,41).
– “Todos os fiéis cristãos são, pois, convidados e obrigados a procurar a santidade e a perfeição do próprio estado” (LG,42).
É preciso frisar também que não se pode pensar numa santidade grande para os sacerdotes e religiosos e uma santidade pequena para os leigos. Não! Nós estamos falando de plenitude da vida cristã. Todos – Bispos, Presbíteros, Diáconos, leigos, pais de família, esposos e esposas, viúvos e solteiros, pobres, fracos, doentes, atribulados e sofredores – podem e devem ser santos. Esta é a vontade de Deus: que sejamos santos e que façamos muito apostolado, que trabalhemos na missão evangelizadora da Igreja, como bem pôs de relevo a Assembléia Diocesana de 2007 aqui em Anápolis.
Nunca falaremos bastante da importância da caridade na vida cristã. O Concílio também não perde de vista que o vínculo da perfeição é a caridade (Col 3,14). Diz a LG que a caridade é a que rege, informa e conduz ao fim todos os meios de santificação (cf. nº 42). O discípulo de Cristo está sempre bem atento para esse primeiro e grande preceite: o amor a Deus e ao próximo: “o verdadeiro discípulo de Cristo se distingue tanto pelo amor a Deus como pelo amor ao próximo” (LG,42)
“Bendito seja Deus… nos escolheu nele [em Cristo] antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante de seus olhos.” (Ef 1,3-4). Para sermos santos, isto é para realizarmos nossa vocação de cristãos, contamos com a graça do Senhor, não podemos, porém, deixar de lado que nós precisamos lutar, combater para consegui-lo. É preciso – como nos diz LG,42 – ouvir a Palavra de Deus, cumprir a vontade de Deus por obras, participar dos sacramentos, fazer oração, ser abnegados, servir os irmãos. Jesus provou-nos o seu amor dando a sua própria vida por nós: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Vós sois meus amigos, se praticais o que vos mando” (Jo 15,13). Santidade é amizade com Jesus. Seremos seus amigos se fizermos o que ele deseja para cada um de nós.
Diz o Catecismo da Igreja Católica: “O caminho da perfeição passa pela cruz. Não existe santidade sem renúncia e sem combate espiritual. O processo espiritual envolve ascese e mortificação, que levam gradualmente a viver na paz e na alegria das bem-aventuranças” (nº 2015).
São Gregório de Nissa, animando-nos a lutar sempre, diz que “a perfeição cristão só tem um limite: ser ilimitada”. É preciso que nunca nos contentemos conosco mesmos. Sejamos santamente teimosos, insistamos com o Senhor ainda que tenhamos quedas e fraquezas: “Senhor, quero ser santo”. O santo, no fundo, é o teimoso.
É muito conhecida a história daquele mendigo violinista que, à porta da igreja, tocava cada domingo a mesma peça no seu velho violino, à espera de que lhe lançassem aos pés umas pobres moedas. Um dia, tocava essa sua única música diante de um pequeno auditório que o escutava benignamente. O violino rangia desafinado… Quando terminou, um senhor muito distinto pediu-lhe polidamente o instrumento. Afinou cuidadosamente as cordas e começou a tocar. E fê-lo de tal maneira que em poucos minutos a praça ficou cheia de gente; as notas ecoavam no ar com uma agilidade e vibração arrebatadoras. Foi quando, no meio do silêncio, se ouviu um grito: – “É o meu violino; é o meu violino!” Era o pobre mendigo que bradava entusiasmado, orgulhoso, porque do seu violino saía uma música tão maravilhosa…
Quem tocava era o grande violinista Sarasate, interpretando genialmente uma das suas “Árias ciganas”.
(Rafael Llano Cifuente, Alegria de viver, págs. 73-74)
Nós somos como um violino desafinado que Deus toma em suas mãos, afina e tira uma belíssima melodia. O apostolado, outro aspecto da vocação cristã não separável do primeiro, é conseqüência “natural” de quem está procurando ser santo. A vocação cristã é vocação à santidade e ao apostolado! Temos na Igreja a mesma dignidade, fomos batizados no mesmo Espírito e na mesma fé.
Diz o Concílio que o apostolado dos leigos “é participação na própria missão salvadora da Igreja, e para ele todos são destinados pelo Senhor, por meio do Batismo e da Confirmação.” (LG 33). O apostolado dos leigos não é uma extensão do apostolado da hierarquia, eles não são a extensão do braço da hierarquia Os leigos têm como missão primordial iluminar todas as estruturas terrenas com a luz de Cristo, com o fogo do amor de Deus que queima em seus próprios corações. Para que possam consegui-lo é preciso que eles mesmos sejam luz e tenham o amor de Deus em seus corações. Não basta apenas ser vela que ilumina, é preciso também queimar. O Senhor Jesus disse: “Eu vim lançar fogo à terra, e que tenho eu a desejar se ele já está acesso?” (Lc 12,49). Trata-se do fogo do amor de Deus. Não há dúvida: para cristianizar o mundo temos que ser bons cristãos, porque senão nós, os cristãos, seremos mundanizados.
O processo de secularismo que nós estamos vivendo, isto é, a independência de Deus por parte das criaturas (isto é o que alguns desejam!), está indo muito rápido. Estamos vivendo numa sociedade neo-pagã. Uma sociedade de batizados, sim, mas na prática vivem como se Deus não existisse (ateísmo prático). Dizem alguns: “sou cristão, mas quando eu estou disputando um cargo político posso discordar de posições morais da Igreja”, dizem outros: “sou católico, mas como médico sou a favor do aborto”, outro ainda: “sou cristão católico, vou à Missa, rezo, mas no exercício da minha profissão não preciso ser tão honesto assim”, poderíamos citar outros exemplos de pessoas que fazem uma ruptura do ser cristão com a vida profissional e familiar. Esses, com certeza, não são verdadeiros cristãos. Até se lhes agradeceria se fossem menos “católicos”, isto é, que não saíssem por aí dizendo que são católicos, quando não na verdade estão é dando uma imagem falsa daquilo que é ser verdadeiro católico. O cristão sabe o valor da cruz, o valor das dificuldades, sabe que não pode negar na prática aquilo que crê no coração ainda que tenha que perder a fama, a vida, as honras deste mundo. Somente com leigos comprometidos, conscientes de sua vocação, apaixonados por Deus, o mundo será evangelizado em todas as suas estruturas.
“Além disso, também pela união das próprias forças, devem os leigos sanear as estruturas e condições do mundo, se elas porventura propendem a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas da justiça e antes ajudem ao exercício das virtudes do que o estorvem.” (LG 36)
São Tomás Moro, foi um desses homens que não vendeu a sua alma em troca de dinheiro, de fama, de bem-estar. Foi um cristão leigo, um cristão corrente que soube harmonizar muito bem a sua vocação de pai de família com a profissão de advogado e, mais tarde, de chanceler do Reino da Inglaterra. Quando Henrique VIII quis que os seus súditos jurassem a Ata de Sucessão (por meio dessa se reconhecia o matrimonio entre Henrique VIII e Ana Bolena, e o rei como chefe supremo da Igreja da Inglaterra, negando a autoridade do Papa), que era anticristã, Tomás Moro, não querendo trair a sua própria consciência de homem e de cristão preferiu ser preso e martirizado a dobrar-se perante os caprichos de um rei autoritário.
Para viver a vocação cristã, santidade e apostolado, é preciso coragem nos dias de hoje, muito otimismo e muita graça de Deus, principalmente. Tudo isso está ao nosso alcance!
Pe. Françoá Costa