Hoje, neste dia jubilar no qual celebramos os 25 anos de sacerdócio de nosso Bispo Auxiliar: Dom Dilmo Franco de Campos, no contexto do Ano Vocacional, toda a Solene Liturgia de hoje, convida-nos a meditar neste grande Dom e Mistério que é a vocação sacerdotal. Já afirmava São João Paulo II:
A vocação é o mistério da eleição Divina: “não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e produzirdes fruto e para que o vosso fruto permaneça. ” (Jo 15, 16). “Ninguém, pois, se atribua esta honra, senão o que foi chamado por Deus, como Aarão” (Hb 5,4). “Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísseis do seio, eu te consagrei. Eu te constitui profeta para as nações.” (Jr 1,5). Estas palavras inspiradas não podem deixar de mexer profundamente com cada alma sacerdotal. Por isso, quando falamos do sacerdócio e damos testemunho, nas mais diferentes circunstâncias, por exemplo nos jubileus sacerdotais, devemos fazê-lo com grande humildade, conscientes de que Deus “nos salvou e nos chamou com uma vocação Santa, não em virtude de nossas obras, mas 1 São João Paulo II, Dom e Mistério, pp.9-10. 2 em virtude do seu próprio desígnio e graça” ( 2 Tm 1,9). Ao mesmo tempo, damos-nos conta de que as palavras humanas não são capazes de arcar com o peso do mistério que o sacerdócio leva em si.
No entanto, tendo plena consciência de que cada vocação, “na sua essência mais profunda é um grande mistério, é um dom que supera infinitamente o homem”, quero meditar convosco três aspectos da vocação sacerdotal, à luz da Palavra de Deus, “que é viva e eficaz”.
O primeiro aspecto é o da vocação sacerdotal como um imperativo a permanecermos no Senhor. Em São João, capítulo 15, o Divino Mestre insiste conosco sobre a importância crucial de permanecermos unidos a Ele, a fim de que nossa vida seja realmente frutuosa e tenhamos forças para seguirmos em frente, mesmo diante das vicissitudes cotidianas. Para tal fim, o Senhor toma a figura da videira e dos ramos.
Diz-nos o Papa Francisco: “O próprio Senhor é a videira, a videira «verdadeira» (15, 1), que não atraiçoa as expectativas, mas permanece fiel no amor e nunca falha, apesar dos nossos pecados e divisões. Nesta videira, que é Ele, estamos enxertados como ramos todos nós, batizados: quer dizer que só unidos a Jesus é que podemos crescer e dar fruto”.
Este capitulo 15 está inserido praticamente entre dois capítulos bem basilares: o capitulo 13, no qual Jesus lava os pés dos discípulos, anuncia a traição de um de seus escolhidos e prediz a negação de Pedro; e o capítulo 17, que é marcante por Sua Oração Sacerdotal.
Assim, entre estas duas grandes passagens, bem no centro, o Senhor nos diz: “Ego sum vitis vera (…) Manete in me, et ego in vobis: Eu sou a videira verdadeira (…) Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós” (Jo 15, 1.4). Porque para lavarmos os pés uns dos outros, para não o abandonarmos e não o negarmos, como poderemos ler no capítulo13, precisamos permanecer (manere) unidos a Ele, como os ramos a videira. E este permanecer unidos ao Senhor é traduzido pela oração, como poderemos perceber no capitulo17.
Com efeito, “Se todo cristão deve orar, o sacerdote o deve fazer mais do que qualquer outro seguidor de nosso Salvador. O respeito do presbítero diante da transcendência de Deus, o temor ao meditar no tremendo ministério dos mistérios de Cristo a ele confiado na Igreja, e a consciência da própria fragilidade e pequenez, devem leva-lo a pôr-se de joelhos para orar. Também a incapacidade humana de fazer algo de útil para salvação que não venha da graça totalmente gratuita de Deus, é outro motivo para orar”. Como diz-nos o próprio Senhor: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,5). A partir daqui, do estar com o Divino Mestre, deve arder o nosso coração, fim de que possamos nos colocar a caminho.
Na verdade, o grande ideal de santidade passa necessariamente por esta prerrogativa que é a de permanecermos unidos ao Senhor, pois somos chamados, antes de tudo, a sermos seus amigos, como nos diz o próprio Mestre: “Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (Jo 15, 15b). É desta amizade com o Senhor, de um Coração que fala a outro coração (Cor ad cor loquitur) que brotará toda a fecundidade do ministério sacerdotal, pois assim poderemos compreender a vida como “uma chamada à santidade, experimentada como um desejo profundo do coração humano de entrar em comunhão íntima com o Coração de Deus”.
Assim, caros irmãos e irmãs, permanecermos em Cristo e Ele permanecer em nós, será sempre para nosso proveito, ou seja, para o nosso bem; como ensina Santo Agostinho:
Ambas as coisas [permanecer em Cristo e Ele permanecer em nós], afinal, aproveitam, não a Cristo, mas aos discípulos, do mesmo modo que os [ramos] estão na videira, não para lhe oferecerem alguma coisa, mas para dela tirarem a vida; já a videira está nos [ramos] para administrar-lhes o sustento vital, não para toma-lo delas; assim, tanto uma coisa quanto a outra, Cristo neles permanecer e eles permanecerem em Cristo, aproveita aos discípulos, não a Cristo […] Pois quem presume dar fruto de si mesmo, não está na videira; quem não está na videira, não está em Cristo; e quem não está em Cristo, cristão não é .
Assim, vislumbramos que o segredo da perseverança em nossa vocação passa por este permanecermos unidos ao amor do Senhor. Permanecer para dar fruto: “como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira” (v.4b); permanecer para sermos felizes: “Eu vos disse isso, para que minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (v.11); permanecer para vencer o ódio do mundo: “se o mundo vos odeia, sabei que primeiro odiou a mim (v.18); mas tende coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16,33b).
A respeito, ainda, da importância de nossa vida de intimidade com o Senhor, de permanecermos no seu amor, exortava o Papa Bento XVI:
Caros sacerdotes, o Senhor chama-nos amigos, faz de nós seus amigos, confia-se a nós, confia-nos o seu corpo na Eucaristia, confia-nos a sua Igreja. Então, devemos ser verdadeiramente seus amigos, ter com Ele um só sentir, desejar o que Ele deseja e não desejar o que Ele não deseja. O próprio Senhor Jesus nos diz: “Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando” (Jo 15,14). Seja este o nosso propósito comum: fazer, todos juntos, a sua santa vontade, na qual estão a nossa liberdade e a nossa alegria.
O segundo aspecto é o da vocação como uma graça, um dom que nos é conferido por Deus por puro amor e misericórdia. Como diz-nos o próprio Senhor no Evangelho desta solene liturgia: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça” (v.16).
Uma graça que brota do puro amor de Deus que olhou para nós, como ao publicano Mateus, na coletoria de impostos: “Viu Jesus a um publicano e como o olhou com sentimentos de amor o elegeu e lhe disse: siga-me – “Miserando atque eligendo” (São Beda). Neste sentido, São Gregório vai lembrar-nos: “mas quem quer que alcance esta honra de ser chamado amigo de Deus não deve atribuir a seus próprios méritos os dons que recebe desde cima”.
Santo Agostinho, a este propósito, vai chamar a vocação sacerdotal de “graça inefável”10 e indaga-nos: “o que éramos, afinal, antes de escolher Cristo, senão iníquos e perdidos? […] vede como Nosso Senhor não escolhe homens bons, mas torna bons os que escolhe; pois segue: ‘e vos designei para irdes e para que produzais fruto’. Este é o fruto sobre o qual dissera: ´Sem mim nada podeis fazer’. Ele é o próprio caminho, em que nos destinou para que vamos”.
Por isso, na segunda leitura desta liturgia, São Paulo diz-nos que “recebemos este ministério da misericórdia divina” (2Cor 4,1) e também que “trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós” (v.7).
O que, de fato, é nosso são as nossas limitações e o que reluz em nós, não brota de nós, mas sim desta sublime graça. Uma graça que foi derramada sobre nós pelo Espírito Santo de Deus, mediante a oração da Esposa de Cristo (a Igreja), da imposição das mãos do sucessor dos Apóstolos (o Bispo) e da sagrada unção.
A propósito, ensina-nos o Catecismo, que a unção “designa e imprime um selo espiritual” (n.1293). O selo do Espirito Santo (Cat. 1295). O selo é o símbolo da pessoa, sinal de sua autoridade, de sua propriedade sobre um objeto (n.1295). “Este selo do Espírito Santo marca a pertença total a Cristo, o colocar-se a seu serviço, para sempre, mas também a promessa da proteção divina na grande provação escatológica” (n. 1296).
Daí segue o que escutamos na primeira leitura de hoje na Profecia de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu” (Is 61,1). A unção torna presente na alma, não uma simples realidade, mas alguém: Deus. Sua graça é transformadora, e implica numa mudança ontológica.
Assim, o chamado torna-se um outro Cristo (auter Christus), a fim de que tenha condições de ser um dispensador de sua graça. O sacerdote, portanto, não se pertence mais. Ele “recebe o próprio ‘nome’, isto é, a própria identidade, de Cristo. O seu ‘eu’ torna-se totalmente relativo ao ‘Eu’ de Jesus. Desta forma, “não podemos evitar reproduzir em nossas almas o mistério representado no Altar. Age quod agitis. Como Nosso Senhor se imolou, assim também nos imolamos”. Portanto, o sacerdote conforma a sua vida ao mistério da cruz do Senhor. Como dizia Santo Agostinho: “Ideo sacerdos, quia sacrificium: sacerdote porque vítima (Confissões, 10, 43).
O terceiro aspecto é o da vocação como uma missão. O sacerdote é chamado a uma missão sublime, por causa dela é ungido; sendo, portanto, revestido de uma grande graça e, através desta, é enviado a uma grande missão: levar Deus a humanidade ferida.
Recorda-nos a Carta aos Hebreus, “ todo sumo sacerdote é retirado do meio do povo e constituído a favor do povo nas relações com Deus para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5, 1). Santo Tomás de Aquino ensina que o “sacerdote é constituído intermediário entre Deus e o povo [e continua]. Ora, quem precisa de um intermediário para chegar a Deus é aquele que não pode chegar a Deus por si mesmo”.
O presbítero, portanto, é ornado por graças e virtudes, a fim de que possa fazer chegar a Nosso Senhor todas aquelas almas alquebradas pelas vicissitudes da vida, cujos os corações estão esmaecendo e que, sozinhas, não conseguem chegar a Cristo.
A humanidade tem sede de Deus e o sacerdote é aquele que leva Deus a humanidade ferida, pois “se forem analisadas as expectativas que o homem contemporâneo nutre a respeito do sacerdote, ver-se-á que, no fundo, há naquele uma única e grande expectativa: ele tem sede de Cristo. Todo o resto – o que lhe falta do ponto de vista econômico, social, político– pode pedi-lo a muitos outros. Ao sacerdote, pede Cristo! E dele tem direito de recebe-lo, antes de mais nada mediante o anuncio da Palavra” .
Por isso, ensina o Concilio Vaticano II, que os sacerdotes têm, como primeiro dever, anunciar a todos o Evangelho de Deus18, pois “Ele (o Senhor) quer que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4); uma vez que a “Igreja está no mundo como sinal da vontade salvífica do próprio Deus”.
Assim, como fiel dispensador dos mistérios da salvação, a exemplo do próprio Mestre, o sacerdote é enviado a dar a boa-nova aos humildes, a fim de que não esqueçam que deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3) e, portanto, não esmoreçam; para curar as feridas abertas em tantas almas que estão perdendo a esperança; pregar a redenção aos que vivem em diversos tipos de cativeiros em nosso mundo contemporâneo, particularmente o pior dos cativeiros: o pecado que “produz a pior de todas as tiranias” (2Tm 3); libertar, por meio dos Sacramentos, tantos que ainda encontram-se, como o cego Bartimeu, gritando pelas periferias existenciais: Filho de Davi, tem piedade de mim!
O presbítero tem a grande missão de devolver a coroa da dignidade de filhos de Deus àqueles que se encontram nas cinzas, o óleo da alegria aos que estão mergulhados na aflição em busca de um refrigério para suas vidas, o manto do louvor aos que estão imergidos pela capa da tristeza, pois “a vida toda e o ministério do presbítero se destinam a serem nele uma forma explicita de viver o amor a Deus e ao próximo”.
Permitamos, a cada dia, que o Senhor nos conduza, pois só n´Ele encontraremos a verdadeira segurança para nossas vidas, o repouso que tanto almejamos. E, mesmo na noite mais escura, ou nos desertos mais causticantes, a certeza de que Ele nos guia no caminho mais seguro será sempre o nosso consolo e conforto. Que a Virgem Santíssima, interceda por cada um de nós, a fim de que levemos a bom termo esta sublime missão: levar Deus à humanidade. Amém!
Pe. Augusto Gonçalves Pereira.