1. A Tradição como atividade e como objeto
2. Tradição constituinte e não constituinte
3. Tradição com “T” maiúsculo e tradição com “t” minúsculo
4. Tradição no tempo e Tradição no espaço
A “tradição” (do latim – trado-ere – transmitir) possui no cristianismo numerosos significados, e visto que faz parte dos conceitos básicos em teologia, é preciso deter-se nela mais atentamente. Diz-se, por exemplo, que a Igrejas protestantes são Igrejas da Palavra de Deus, e a Igreja católica – a Igreja da Tradição. Na própria Igreja católica pode-se ouvir em certos ambientes o elogio de alguma teologia por estar de acordo com a Tradição, e em outros a censura por alguém praticar a teologia tradicional. De modo que uma boa explicação do problema da tradição constitui uma questão excepionalmente importante.
1. A TRADIÇÃO COMO ATIVIDADE E COMO OBJETO
A tradição como atividade. O nome “tradição” provém do latim trado – “transmito”. Portanto aponta para uma atividade. Se Cristo transmitiu aos Seus discípulos a Boa Nova, se os apóstolos e os Evangelistas a transmitiram aos seus ouvintes e leitores, se os Padres da Igreja, os escritores, os pregadores, os catequistas ou os pais transmitiram às gerações subseqüentes o Evangelho que eles mesmos receberam, eles participaram dessa forma do grande acontecimento da tradição.
A tradição como objeto. Muitas vezes define-se como “tradição”aquilo que é transmitido pelo processo da tradição, ou seja, a doutrina, a forma de vida, os escritos, o monumento da cultura, etc. Nesse sentido apontamos para os escritos dos Padres da Igreja dizendo: “Eis a grande tradição cristã”, ou para os numerosos monumentos do cristianismo antigo em Roma dizendo: “Vocês estão olhando para Roma, e estão contemplando séculos de tradição do cristianismo”.
2. TRADIÇÃO CONSTITUINTE E NÃO CONSTITUINTE
A tradição definidora ou constituinte estabelece o depósito da Revelação. Pertence a ela tudo o que Cristo transmitiu à Sua Igreja no âmbito da fé e dos costumes; e igualmente aquilo que por vontade de Cristo e sob a inspiração do Espírito Santo estabeleceram os apóstolos como obrigatório na Igreja, por exemplo a maneira de conferir o Espírito Santo pela imposição das mãos, a unção dos enfermos, etc. A vida da Igreja manda introduzir na tradição apostólica definidora a sua distinção em tradição de sentido geral (ambos os exemplos acima citados) e de sentido restrito (por exemplo a proibição de abster-se do consumo de sangue dos animais ou a proibição dada por S. Paulo às mulheres de não se pronunciarem na Igreja).
Tradição não definidora. Toda tradição de certa forma estabelece alguma coisa. No entanto o conceito de tradição “não definidora” foi introduzido para com ele distinguir toda a grande tradição que não faz parte da tradição constituinte de Cristo e da tradição constituinte dos apóstolos, não possuindo um significado universal. Portanto a tradição não definidora abrange toda a tradição fora do depósito da revelação, que sempre obriga a Igreja toda.
Da tradição não definidora faz parte a tradição interpretante, que esclarece o depósito constituído da revelação. Fazem parte dela os escritos dos Padres da Igreja, dos sínodos, dos bispos, os símbos da fé, os escritos dos teólogos, a anunciação da Igreja, os trabalhos dos teólogos, etc.
Podemos descobrir as tradições interpretantes já na Bíblia. O acontecimento único da instituição da Eucaristia é transmitido pelos Evangelistas em três versões, e antes deles isso havia sido feito por S. Paulo (1Cor 11). Até as palavras da instituição chegaram até nós em versões um tanto diferentes anotadas no Novo Testamento.Constitui uma tarefa difícil dos exegetas chegar através dessas tradições, de certa forma já interpretantes, às autênticas palavras de Cristo, que constituem o cerne da tradição constituinte.
A tradição constituinte encerrou-se com o término da Revelação pública. A Igreja não tem pretensões de completar a Revelação, mas quer ser uma serva da Palavra Divina, nunca a sua senhora. Cumpre o seu serviço diante da Palavra Divina através das diversas formas de interpretá-la.
3. TRADIÇÃO COM “T” MAIÚSCULO E TRADIÇÃO COM “t” MINÚSCULO
Essa distinção foi adotada na literatura teológica mais recente, embora os significados de ambos os nomes não tenham sido exatamente definidos. Por “Tradição” escrita com “T” maiúsculo entende-se em geral a tradição constituinte e as Tradições interpretantes mais autorizadas, como os símbolos da fé, as formulações dogmáticas dos concílios e as definições ex cathedra. A essa Tradição a Igreja ortodoxa adicionaria o que constitui o seu distintivo teológico, a saber, a não-aceitação do Filioque. Em vez de “Tradição” escrita com “T” maiúsculo diz-se às vezes “Tradição da fé” ou “tradição dogmática”.
A “tradição” escrita com “t” minúsculo, por sua vez, indica as outras tradições, que podem ser tradições das Igrejas ou tradições nas Igrejas. Dessas tradições das Igrejas protestantes fazem parte por exemplo a leitura freqüente da Sagrada Escritua, a oração espontânea, a fuga à ornamentação rica dos interiores das igrejas, e também a demonstração de contrariedade diante da instituição do papado. Com relação às Igrejas ortodoxas, pode-se apontar o riquíssimo ritual litúrgico e a ornamentação dos interiores dos templos, o tipo específico de vida religiosa, o matrimônio dos religiosos inferiores e o celibato dos bispos, o elemento das cúpulas na arquitetura sacra, o tempo da celebração da Páscoa, etc. A Igreja romano-católica, por sua vez, distingue-se pela sua tradição de fortes estruturas eclesiásticas, da legislação firmemente constituída, com uma liturgia relativamente “ascética” – que pela riqueza não se compara à Igreja ortodoxa, por uma certa formalização da vida de oração, pela incomum riqueza das formas de vida religiosa, pelo celibato dos religiosos.
Além das tradições que caracterizam Igrejas inteiras, existem diversas “pequenas tradições” na Igrejas nacionais, paroquiais, nas ordens religiosas, nas irmandades e nas aldeias.Elas constituem uma grande riqueza da vida cristã.
Em vez de “tadição” escrita com “t” minúsculo diz-se também “tradição histórica da Igreja”.
4. A TRADIÇÃO NO TEMPO E A TRADIÇÃO NO ESPAÇO
A tradição no tempo, chamada também de vertical (diacrônica), significa a Tradição e as tradições entendidas no seu desenvolvimento temporal. É essa a tradição que temos em mente quando acompanhamos por exemplo o desenvolvimento da doutrina sobre o Espírito Santo desde as mais antigas tentativas de esclarecer esse mistério até os nossos tempos ou até um determinado ponto da história; ou ainda quando descobrimos o desenvolvimento da consciência na Igreja a respeito das obrigações do cristão diante da cultura, do seu posicionamento quanto à paz e à guerra, ao tipo de autoridade na Igreja, ao matrimônio e ao celibato, aos sacramentos, etc. A dificuldade de se fazer uma análise integral faz com que geralmente a tradição seja investigada apenas em algum período de tempo, ou mesmo num determinado autor.
A tradição no espaço horizontal-sincrônico abrange a Tradição num determinado período de tempo, mas numa área espacial mais ampla possível. Um exemplo clássico de uma tal compreensão da Tradição manifestou-se nos preparativos para a proclamação do dogma da Assunção de Nossa Senhora. Pio XII recomendou que fosse feita uma consulta aos bispos católicos do mundo inteiro perguntando a respeito da sua posição que expressasse a fé das Igrejas que dirigiam. Fez-se então uma tentativa de interpretar a Tradição no espaço, confirmando a fé quase universal na Assunção da Santíssima Virgem Maria, ou seja, de interpretar essa Tradição nos anos quarenta do século XX.
5. SIGNIFICADOS BÁSICOS
Após essas distinções será mais fácil perceber com que variadas significações tem funcionado e funciona o nome “tradição”.
Entre os Padres da Igreja e os escritores da Igreja podem ser distinguidos cinco sentidos principais:
– transmissão do depósito da fé pela sucessão apostólica (S. Irineu);
– aquilo que não foi anotado pelos apóstolos, mas que foi aceito na Igreja, como as normas litúrgicas do batismo e da Eucaristia (Tertuliano, S. Hipólito, S. Cipriano, S. Cirilo de Jerusalém);
– exposição da Sagrada Escritura não anotada pelos apóstolos (S. Clemente de Alexandria);
– aquilo que se aceita em toda a Igreja num determinado período (S. Agostinho, S. Jerônimo);
– aquilo em que crê a Igreja sempre e em toda a parte (S. Vicente de Lerin).
No moderno catolicismo pré-conciliar pareciam prevalecer os conceitos primeiro e quinto. Os manuais de teologia apresentam com mais freqüência como definição clássica de Tradição especialmente a definição de S. Vicente de Lerin: Quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est – o que em toda a parte, o que sempre e o que por todos é aceito pela fé. No entanto é fácil perceber que S. Vicente de Lerin definiu o ideal de Tradição, que jamais tem sido realizado e – considerando de forma prática – não pode ser realizado.Além disso o “cânone de Lerin” (como algumas vezes é chamada a definição do santo) é nocivo, visto que impossibilita o desenvolvimento da consciência da fé na Igreja.
Desde o Concílio Vaticano I até o Concílio Vaticano II atingiu a posição de expressão máxima da Tradição, ao menos de forma prática, a doutrina dos papas. O último Concílio lembrou outras formas significativas de Tradição: a fé do Povo de Deus, a liturgia, os Padres da Igreja…